Treinador acredita que relações interpessoais são tão importantes quanto a tática
Fernando Diniz comanda o Atlético Paranaense
Fernando Diniz foge ao padrão. Não por defender um jogo baseado na
construção ofensiva, na posse de bola, na busca pela estética e pela beleza,
estilo oposto à ditadura do contragolpe e da velocidade no futebol brasileiro.
Mas também pela forma como busca estruturar suas equipes. Psicólogo formado,
defende que as relações interpessoais e o conhecimento do ser humano que está
por trás do jogador é um pilar tão importante quanto os treinos táticos, que
também valoriza fortemente. A entrevista de mais de uma hora com o GLOBO já
terminara quando disse a frase que talvez sintetize seu ideário de futebol:
— Futebol é mais arte do que ciência. Quando encanta, fica para
sempre.
O estilo de seus times foge ao padrão brasileiro, onde predomina a
transição em velocidade. Acha que os riscos da implantação do modelo retardaram
sua chegada a um time de Série A?
Em parte. Mas não é correto também achar que precisa de um tempo
exagerado para começar a acontecer. Treinamos 15 dias e estreamos contra o
Caxias. Havia um esboço. Claro que, para ficar legal mesmo, leva tempo. Mas
será que um técnico com modelo tradicional teria um time mais preparado? A
grande questão é que futebol não é simplesmente tática, é uma atividade humana
em que a criação de um bom ambiente é preponderante. Limitar tudo à tática faz
faltar um pedaço na discussão. O que faz levar tempo não é o jeito de jogar
diferente, é o jeito de viver diferente.
Valorizamos pouco as relações humanas?
Nem tudo é tático, embora o trabalho tático seja um pilar do meu
trabalho. Mas a construção de uma comunidade é algo que adoro fazer, é a base:
viver melhor para ser um time mais forte. É importante o sujeito sair do
trabalho mais fortalecido do que entrou, e não mais enfraquecido.
Mas como esta comunidade ajuda a construir o modelo de jogo?
Jogamos um futebol de construção, com a bola. É um modelo básica e
fundamentalmente solidário. Muito jogo de movimentação, dez se movendo para só
um de cada vez estar com a bola. Ao criar padrões de movimento, achar brechas,
é preciso um senso de amizades, de parcerias gigantescas. Num jogo reativo, é
mais fácil: baixa o bloco, fica todo mundo mais próximo, ninguém precisa se
mover muito. Mas não é o jogo em que acredito.
Isto inclui entender o ser humano? Um zagueiro com mais coragem vai
aderir à ideia de sair jogando, arriscar um passe...
Pra mim é um conceito de vida: uma pessoa melhor é um profissional
melhor. Um sujeito mais dedicado, com mais coragem, mais esforçado, é melhor
para trabalhar. Tem um monte de talentoso que fica no caminho por falta de
força humana, medo, angústia, que não teve nenhuma noção de limite na infância.
O principal problema do Brasil é psicossocial. Quase sempre o mais talentoso é
o que demanda mais das comissões técnicas na parte humana: viveu muito tempo na
rua, o clube pegou com 13 ou 14 anos e não ofereceu quase nada de substrato
humano. Aí, aos 18 ou 19 anos vai cobrar profissionalismo? É desumano. É
preciso entender a história de vida. Dá duas horas para ele falar o que foi a
vida dele.
Há um consenso de que o jogo com domínio da bola só é acessível a
times ricos, com craques...
Se eu acreditasse nisso jamais teria feito o que fiz. É uma abordagem
tática, uma força coletiva que precisa funcionar muito bem. Exige treino,
coragem de tomar umas porradas. Agora, se todo mundo jogar dentro do mesmo
modelo, claro que quem tem os melhores jogadores prevalece. Hoje, a maioria
joga reagindo, e quem investe menos tende a se defender ainda mais para
contra-atacar. Busco outras lógicas, construir de outra forma
Então o modelo é treinável?
Completamente. O ponto é o técnico saber aquilo que busca, estar
convicto. Não existe certo ou errado. Eu não jogo assim por querer fazer
diferente. É o jeito qu e acredito que me dará mais chance de ganhar. E que dá
prazer.
O que te faz crer que com construção ofensiva há mais chance?
Construir bem pode levar tempo, exige muita participação e entrega.
Mas uma vez que se tenha bom funcionamento, você sempre está mais perto de
ganhar. Gera parceria, um funcionamento como time. Mas já ganhei e perdi assim,
é o gosto do freguês. Esta é minha crença de futebol. Já ganhei jogo marcando
em linha baixa (com a defesa mais recuada) porque o jogo impôs. Mas o marcante
para mim é ganhar construindo.
Então há vitórias que não dão prazer?
Já tive, sim. Mas não por causa do modelo... Eu faço o que acho mais
bonito, mas também porque acho mais competitivo. Não jogo assim para perder
jogo. Mudar estratégia em alguns momentos é do jogo. A Alemanha hoje joga mais
bonito não é pela beleza, é porque entenderam que é melhor jogar bem. Espanha
desenvolveu seu modelo não por ser bonitinho, mas pela eficiência.
Como foi criando estes conceitos, estas convicções?
Tenho a impressão clara de que eu fui jogador apenas para poder ser
técnico. A sensação de contentamento e prazer é muito maior agora do que quando
jogava. Fui observando coisas que treindores faziam e criei uma base de
conhecimento para o que queria: jogar bem, ter posse de bola, não vencer de
qualquer jeito. Vislumbro um estilo em que o jogador sinta prazer, se exprima.
Os grandes craques me apaixonaram pelo jogo. E isto vale para quem joga bola.
Não tem jogador ruim em time grande. Quem passou pelo funil do futebol é porque
é bom, foi bom na rua, na escola. E tem prazer em jogar, ter a bola, quer
mostrar o que sabe. Mas exige coragem, porque o futebol potencializa a vida: o
que erra tentando é alvo. O futebol é um meio exposto e, em diferentes níveis,
todo mundo conhece futebol. Sei que o jogo de que gosto não é o único que
existe. Mas é o que acredito.
Você não teve uma formação acadêmica como treinador?
Não. O que gosto é de criar, melhorar em cima de um estilo de jogar,
ver o time jogando bem, jogadores progredindo para que façam sucesso na vida.
Quero que o jogador se sinta bem. A base da construção é o nosso próprio time,
ver como sai de situações. As pessoas querem receita pronta, eu acredito em
avançar em coisas positivas que você vê no futebol. Há muita coisa para
construir. É preciso coragem para testar, não ficar repetindo a mesma receita.
O jogador brasileiro é, na média, taticamente inteligente?
Isso é igual escola. Se você tem boas informações na base, será bom
depois. É estímulo. Não adianta ensinar álgebra depois dos 18 anos, é mais
difícil. Há muito estímulo para fechar espaço e jogar em transição. Nisso o
Brasil avançou. Quase todos os lugares que vou ver jogo de base, você nota este
tipo de informação. Na construção ofensiva, estamos devendo.
Uma nova geração de treinadores ganha espaço no Brasil. O que as
gerações antigas ainda têm a contribuir?
Eu não me enquadro neste tipo de conflito. Vi coisas encantadores em
times de Telê, Carpegiani. O time que jogou o melhor futebol do ano passado era
do Renato Gaúcho... Quero estar perto de qualquer geração que goste das coisas
que eu gosto. Tenho muito respeito a pessoas como Osvaldo, Dorival, Vágner
Mancini. E por caras novos como Zé Ricardo, Fábio Carille, que é meu amigo
pessoal. Tem gente competente cá e lá.
Mas que times gostou de ver ao longo da vida?
Vi times muito bonitos: o Flamengo dos anos 80, a seleção de 82, o São
Paulo do Telê, o Palmeiras dos anso 90, Barcelona, seleção da Espanha, o Klopp
no Borussia Dortmund, embora fosse uma transição mais rápida. Gosto de como
Simeone mobiliza seu time, embora seja uma forma muito diferente da minha. Vejo
beleza do aspecto coletivo enraizado, uma construção humana gigantesca ali.
Vejo pessoas se defenderem e se protegerem de forma muito linda.
Você fala no prazer do jogador. E o público?
Para mim o público importa, precisa importar. Eu era assim, só gostei
do futebol pelas coisas bonitas que faziam. Se você joga bem, constrói coisas
bonitas, mesmo se não ganhe, deixa algo que fica. A seleção de 82 só não ganhou
o jogo, mas ganhou um monte de outras coisas. Se você joga só pelo resultado,
sem beleza, e perde, não há mais nada para apreciar. O principal é ganhar o
jogo, mas por vezes há coisas bonitas no caminho que não se pode jogar fora. A
Alemanha demorou a ganhar, mas não jogou fora o trabalho. Para mim, jogou muito
melhor em 2010 do que em 2014.
Há mecanismos que vão além do treino na construção de relações
humanas?
Claro. Como você aborda o jogador, como chega para o trabalho, fazer
uma dinâmica de grupo, assistir a um filme. Mas também ver o seu time jogando e
discutir com os jogadores, fazer que eles sejam co-construtores do modelo de
jogo. É um processo muito rico, porque eles veem coisas que você não vê.
O ambiente que cerca o futebol é conservador? As pessoas aceitam o
time mais pobre que se defenda e perca. Mas se ele perde tentando atacar, é
criticado por ousar...
Sim, depois as pessoas dizem que querem mudança. Não querem mudar,
querem ganhar. Querem o novo, mas só até a página 1 do livro.
O que você sente ao ver o United de Mourinho, com recursos, jogar de
forma conservadora?
Não é o que me agrada. Há grandes jogadores, mas não o que, para mim,
é a essência do jogo. Você precisa defender em alguns momentos, mas ter esta
postura com predominância, podendo jogar para a frente, não me agrada. Não é o
que move a maioria dos jogadores que se apaixonam pelo jogo. Tem que ter
beleza, é um conceito de vida de que gosto. Gosto que seja bonito, que o
jogador tenha prazer e passe para o público. O mais importante quase sempre é a
vitória, mas há maneiras diferentes de buscá-la. Ningúem controla resultado, é
como a vida. A vida é caótica, você não controla o tempo, sabe que vai morrer.
Mas pode controlar a forma de viver, criar ambientes para se sentir bem.
E o que mais admira nos times do Guardiola?
A ousadia, o prazer. É legal para caramba ver os caras jogarem. E ele
fez na Espanha, repetiu na Alemanha, agora na Inglaterra. Claro que tem o
diferencial de contar com os melhroes ou mandar buscar. Mas isso não garente
vitória. E a forma de jogar ganha admiração e a chance de ganhar é grande. O
Bayern chegou em três semifinais de Liga dos Campeões, esteve sempre na frente,
o trabalho tem consistência.
O que te incomodava nos tempos de jogador?
Sempre achei muito agressiva essa inversão de valores, que ainda
existe. Se você joga bem, é tratado como boa pessoa. O que joga mal, como uma
pessoa pior. O sujeito que mais precisa de ajuda é o menos ajudado. Isto é o
oposto do futebol coletivo: o que está bem fica cada vez melhor e o outro é o
oposto. Isso não é time. Vi muitos jogadores se perderem. A questão social é
muito pouco valorizada, o jogador é tratado como o objeto que entrega
resultado. E o que ele é como pessoa é descartado.
O Brasil produz poucos zagueiros com coragem e técnica para sair
jogando, arriscar passes?
Acho que tem mais a ver com o modelo de jogo, que precisa ser um
facilitador. Eles precisam ser estimulados também. Não adiante ser bom
tecnicamente mas o time não oferecer a opção do passe: vai passar para quem? Se
o time só jogar em transição, o defensor não vai usar este recurso. Mas você
pode ter um zagueiro sem tanta qualidade técnica e, com um modelo que facilite,
com estímulo, ele passa a jogar mais.
E a falta de meio-campistas que joguem de uma área à outra?
Acho que está mudando. Embora o Corinthians jogue mais em
contra-ataque, Gabriel era centroavante na base e hoje é um volante que se
aproxima, sabe bater de fora da área. E joga com dois meias que constróem. O
Palmeiras tem Felipe Mello, Lucas Lima e Tche Tche, o Grêmio tem Arthur e
Maicon. Mas insisto na questão do estilo, do modelo. Se você tem estes
jogadores e monta o time para jogar em espera, as qualidades deles vão aparecer
menos.
O futebol oferece dinheiro rápido a uma elite de jogadores que, em sua
maioria, teve uma vida de privações. Isto explica tantos jogadores brasileiros
saírem cedo do ápice das carreiras: Ronaldinho Gaúcho, Adriano, agora o Ganso?
É uma saciedade precoce?
Não gosto de falar em nomes, não conheço a vida deles. Não posso
julgar. Em termos gerais, sempre falo que é preciso cuidar do jovem de umaforma
mais ampla. Quantos vão virar jogador? Pouquíssimos, mas todos terão que
continuar a vida. Então, uma formação melhor aumenta a chance de ter jogadores
melhores no futuro, mas também de criar um bem estar duplo, no futebol e na
vida. O mundo que ele conhece é o que você permite, os limites que são
impostos. O talento não é o mais importante da vida de ninguém, em nenhuma
profissão. São os valores. É preciso falar disso todo dia, entender a pessoa.
Nem sempre são os mais talentosos que chegam. Claro que há aberrações em termos
de talento: Neymar, Messi, Romário... Mas muitos são muito talentosos e não
conseguem. E há outros que são pau para toda obra, caras dedicados, bons
amigos, parceiros. O talento pdde até arruinar a vida da pessoa. Porque se você
levar em conta a vida útil média da população, ele vai viver mais 50 anos após
o futebol. Com que tipo de vida?
Que pecado você não perdoa num jogador?
Preguiça. Falta de vontade de fazer as coisas. Eu sou apaixonado pelo
que faço, sou apaixonado por futebol e pelos jogadores. Se o cara não faz algo
por falta de vontade, isso para mim desintegra tudo.
(O Globo)
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