Inquérito do Ministério Público, ao qual ISTOÉ teve acesso, identifica
irregularidades na estatização em 2013 de uma universidade privada, que
pertenceu a Gilmar Mendes. Quem selou a transação de R$ 7,7 milhões foi o
ex-governador Silval Barbosa, dileto amigo do ministro do STF
Por conta de sua atuação controversa, Gilmar Mendes tem
desagradado à direita e à esquerda
O Ministério Público do Mato
Grosso está prestes a oferecer denúncia contra o ex-governador do Estado Silval
Barbosa e outras quatro pessoas por atos de improbidade administrativa. Seria
apenas mais um processo contra um ex-governador de Estado, preso por quase dois
anos acusado de chefiar uma organização criminosa, se não envolvesse uma das
figuras mais controvertidas da República, dono de um proeminente assento no
Judiciário brasileiro: o ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar
Mendes.
A denúncia tem como base uma
longa investigação, concluída pelo MP em novembro, sobre a aquisição de uma
universidade particular pelo governo do Mato Grosso durante a gestão de Silval
Barbosa. ISTOÉ teve acesso ao inquérito. Nele, o MP diz que a transação foi
marcada por “práticas de ilícitos morais administrativos”. A instituição de
ensino, localizada no pequeno município de Diamantino, foi fundada em 1999 por
Gilmar Mendes e sua irmã, Maria da Conceição Mendes França. Os dois eram sócios
no negócio. No ano seguinte, para poder assumir a Advocacia-Geral da União,
Gilmar teve de repassar sua parte na sociedade à irmã. Em 2013, Maria da
Conceição vendeu a instituição para a Unemat, a Universidade do Estado do Mato
Grosso, por R$ 7,7 milhões. O governo adquiriu 100% da unidade, incluindo toda
a estrutura de salas de aula, laboratórios e biblioteca dos quatro cursos de
graduação (Direito, Administração, Educação Física e Enfermagem). E instalou
ali o campus Diamantino da Unemat.
A investigação do MP
O diabo mora nos detalhes. A compra, segundo o MP, esteve eivada de
irregularidades. Além da suspeita de superfaturamento, o negócio foi realizado
com recursos extra-orçamentários do Estado e sem autorização da Assembleia
Legislativa. A Promotoria apontou ainda falta de planejamento do governo na
hora de efetivar a compra, ao lançar luz para a ausência de estruturação do
corpo docente e para as condições precárias das instalações. Outra
particularidade da venda da universidade que chamou a atenção do Ministério
Público foi a diferença na metragem do terreno informada por Maria da Conceição
em comparação com o estudo realizado por técnicos do governo. Segundo o MP, “a
referida unidade de ensino foi previamente avaliada pela Coordenadoria de
Avaliação de Imóveis com área total 164.852,49m2 e área construída de 5727,93m2
(4.967,93m2 edifício e 760m2 galpão). Porém, ao ofertar a referida unidade ao
Estado, a sócia diretora da UNED, Maria da Conceição Mendes França, especificou
metragem distinta, a saber: área total de 16.4852 ha e área construída de
7.565,21m2”. Inicialmente, Maria da Conceição chegou a oferecer o campus ao
Estado por R$ 8,1 milhões, mas uma avaliação da Secretária de Administração
apontou que o campus valia R$ 7,7 milhões, valor final do contrato. O decreto
nº 1931 que selou o negócio foi assinado por Silval Barbosa em 13/09/2013.
Procurado pela reportagem da ISTOÉ, o ministro Gilmar Mendes confirmou
que foi sócio da UNED até o ano 2000, quando assumiu a Advocacia-Geral da
União, mas disse que não teve qualquer participação na venda da universidade.
Em Brasília, no entanto, até as emas que circulam pelos jardins dos palácios
sabem que é praxe no serviço público a transferência de propriedades para
parentes somente para se enquadrar às imposições legais. Uma mera formalidade.
Na prática, em geral, os antigos donos continuam a influir nos destinos das
empresas. É o que os indícios apontam aqui nessa transação para lá de suspeita.
Embora Maria da Conceição tenha sido formalmente a responsável legal pela
celebração do negócio, é difícil crer que uma senhora de 63 anos, residente no
interior do Mato Grosso, tivesse acesso direto ao governador de seu Estado a
ponto de convencê-lo a comprar uma universidade particular deficitária,
localizada em um município de apenas 21 mil habitantes. Pior quando o
governador em questão é Silval Barbosa. Em 2015, depois de ser alvo de um
mandado de busca e apreensão em sua casa, ele foi flagrado num grampo da
Polícia Federal em conversas no mínimo impróprias com Gilmar Mendes. “Que
absurdo isso. Um abraço aí de solidariedade”, afirmou o ministro do STF no
diálogo telefônico. Em 2013, o próprio Gilmar resumiu assim sua relação com
Silval: “Somos amigos de muitos anos, sempre temos conversas muito
proveitosas”. Além dos laços estreitos com o ex-governador, a influência que o
ministro Gilmar Mendes exerce até hoje no Mato Grosso é pública e notória. Numa
das discussões mais acaloradas já vistas no Plenário do Supremo, em 2009, o
ex-ministro Joaquim Barbosa usou esse argumento para atacar seu colega de
Corte. “Vossa Excelência quando se dirige a mim não está falando com os seus
capangas do Mato Grosso”, disse Barbosa.
Outra importante questão que se impõe envolvendo a estatização da UNED
é por que o Estado compraria uma universidade particular quando o mais comum é
o caminho inverso, da privatização? No momento da aquisição da UNED, a
Universidade do Estado do Mato Grosso já possuía 11 campus e estava em processo
de compra de um 12º prédio. Depois desse negócio, a Unemat não adquiriu mais
nenhuma instituição particular. Ou seja, tratou-se de uma compra sui generis –
singularíssima, obviamente. No inquérito, o próprio Ministério Público concluiu
que não havia previsão, por parte do governo, de expandir suas atividades para
a região de Diamantino, o que levanta mais suspeitas sobre a compra. “Em nenhum
momento se vislumbra um estudo a respeito do impacto na folha de pagamentos da
Unemat, notadamente, ante a necessidade de realizar concurso público. Eis a
razão pela qual o quadro de funcionários da instituição é majoritariamente
integrado por funcionários contratados precariamente”, disse o promotor
responsável pelo caso, Daniel Balan Zappia.
Chamada a prestar depoimento ao MP em agosto de 2016, a irmã de Gilmar
Mendes negou as irregularidades. Alegou que sua universidade enfrentava
dificuldades financeiras, devido à inadimplência dos alunos. Eram cerca de 900
alunos em 2013. Na investigação, porém, o MP revelou a prática de ilícitos. A
promotoria ainda não decidiu como irá enquadrar a irmã do ministro do Supremo,
mas a principal ponta do outro lado do balcão, o ex-governador Silval Barbosa,
será denunciado com base em três artigos da Lei de Improbidade Administrativa.
O MP não descarta a ligação entre a estatização da universidade de Diamantino
e a contratação do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) – por
coincidência, de propriedade de Gilmar Mendes – para realização de um concurso
público a fim de recrutar 430 servidores à Assembleia Legislativa do Estado. O
edital também foi alvo de investigação pelo Ministério Público. O IDP é outra
incursão do ministro Gilmar Mendes no mundo acadêmico e que também já levantou
uma série de suspeitas.
Fundado em 1998 em Brasília, o IDP oferece cursos, presenciais e à
distância, de graduação, extensão, especialização e mestrado nas áreas de
Direito e Administração Pública. Gilmar Mendes é um dos sócio-fundadores do
Instituto. Desde sua fundação, a instituição de ensino está rodeada de
polêmicas. Uma delas é justamente a atuação de Mendes no IDP enquanto ministro
do STF. Fala-se em conflito ético. Entre 2003 e 2008, o IDP fechou convênios de
pelo menos R$ 1,6 milhão, incluindo com órgãos do governo federal, sem
licitação. Neste ano, a Lava Jato descobriu que o Instituto recebeu R$ 2,1
milhões do grupo J&F, holding que controla a JBS, como patrocínio para
cinco eventos.
Holofotes
Agora enredado em mais uma suspeita, Gilmar Mendes durante muito tempo
despontava como um integrante da ala técnica do STF, junto com outros
ministros, como Celso de Mello e Ayres Britto. A formação de Gilmar sempre foi
muito respeitada. De repente, porém, não se sabe exatamente porque, o ministro
abandonou a liturgia da toga e passou a buscar a luz dos holofotes a todo
custo. Começou a opinar sobre todos os assuntos de interesse do País. E
habituou-se a manter discussões ásperas com colegas de STF. Invariavelmente
suas posições vão contra os anseios da população em acabar com a impunidade
contra políticos e poderosos. Com seus votos inflamados, Gilmar Mendes
tornou-se uma figura controversa e impopular.
Entre as polêmicas recentes do ministro, estão votos pela soltura do
empresário Eike Batista, o ex-ministro José Dirceu e o ex-deputado Eduardo
Cunha. Gilmar também destila críticas às investigações da Lava Jato, disse que
as prisões em Curitiba “se alongaram demais”, e agora, em mais um gesto
contrário aos interesses da sociedade, quer revisar um entendimento do próprio
STF que permite a execução da pena após confirmação da sentença em segunda
instância. A medida beneficiaria diretamente condenados poderosos.
Mas a decisão mais vulnerável de Gilmar envolve o empresário Jacob
Barata Filho, conhecido como o “rei do ônibus” no Rio de Janeiro. Ele foi preso
três vezes, e em todas elas, foi solto graças a habeas corpus da lavra de
Gilmar. Acontece que o ministro foi padrinho de casamento da filha de Barata em
2013. Há relação de proximidade entre investigado e juiz. Existe um problema de
ordem ética. Não aos olhos de Gilmar. Ele não vê conflito de interesse e nem se
declarou impedido de julgar os casos de Barata Filho. Diz que o fato de ser
padrinho de casamento não significa intimidade. Em outubro deste ano, durante
bate-boca acalorado com o ministro Luís Roberto Barroso, Gilmar foi
encurralado: ouviu de seu colega de Tribunal que é um juiz que “destila ódio e
muda a jurisprudência de acordo com o réu”. Barroso recomendou que Gilmar ouvisse
uma música de Chico Buarque, que diz: “a raiva é filha do medo e mãe da
covardia”. Faz sentido. Gilmar precisa ouvir mais os apelos das ruas, pois hoje
é uma das poucas unanimidades num País dividido: ele consegue provocar reações
de desagrado à direita e à esquerda.
IstoÉ
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